Abril de 1948. Nascia no Seringal Capatará, no Amazonas, José Ademar Arruda da Costa. Aos dois anos, o pequeno caboclo experimentou o primeiro dissabor de sua jornada. Viu a vida de seu pai ceifada, assassinado por um dos trabalhadores do seringal. Caçula de uma família de sete irmãos, foi criado pela mãe em Codajás/Am, município localizado à margem esquerda do Rio Amazonas.
A infância pobre foi difícil. Uma lenda da região rezava que peixe de couro causava lepra. Sem ter o que perder, sobreviveram se alimentando de surubim, piramutaba, entre outros peixes de couro que eram doados à família por pescadores que não tinham coragem de encarar a lenda como lenda.
Apesar das dificuldades, todos os filhos foram criados lendo clássicos, encenando peças teatrais, tudo sob a supervisão de padres americanos que viviam na cidade para evangelizar a população. José Ademar se gaba até hoje por ter lido toda a coleção de Machado de Assis antes de completar doze anos.
A vida corria bem, pois pior já estiveram. Em 1960, comiam peixe todos os dias, os irmãos freqüentavam a escola e o filho mais velho, João Arruda, já trabalhava com os padres, sendo o responsável pela instalação do sino que ainda hoje badala na igrejinha de Codajás.
Ademar lia muito, subia em árvores, nadava no Rio Amazonas e jogava futebol como ninguém defendendo o gol de Codajás nos clássicos históricos contra a equipe do município de Coari/Am. Foi em uma de suas atividades serelepes que tudo desandou novamente. Certo dia, Ademar decidiu escalar o muro da casa dos padres. Lá de cima viu o padre e a freira em um ato recíproco de amor ao próximo e você bem sabe do que eu estou falando.
Assustado, o menino correu, mas sua agilidade não foi capaz de impedir que o casal divino percebesse sua presença. No dia seguinte, o garoto foi expulso da escola Nossa Senhora das Graças, a única da cidade. O padre era o diretor daquele estabelecimento cristão e, sorrateiramente, comunicou a expulsão à mãe de Ademar, omitindo os fatos ocorridos naquela ocasião, claro. Ademar teve que deixar a cidade.
Embarcou para Manaus. Somente quando avistaram a Capital Amazonense, ao garoto foi anunciado que ali passaria a morar e estudar, pois havia sido expulso da única escola da pequena cidade do interior do Amazonas.
Ao desembarcar no porto, Ademar viu os carros. Jamais havia visto um daqueles. Encostou as mãos em um deles e prontamente foi repreendido pelo proprietário do veículo, que o chamou de amarelo. Uma de suas tias já o aguardava na cidade e com ela ele foi morar. A tia era costureira. Aos sábados, Ademar cumpria a tarefa de levar a produção da semana para ser comercializada em uma das bancas do Mercado Adolpho Lisboa. O dinheiro era curto. Os rendimentos da tia dava para comprar duas sardinhas por dia, consumidas por ela e por sua filha. Ao sobrinho restava procurar abacates jogados ao chão e furtar bananas, de preferência a pacovan que, pelo tamanho, dava uma satisfatória refeição.
Algumas semanas após a chegada a Manaus, providenciariam a matrícula do jovem no Instituto de Educação do Amazonas.
Enfim, o aguardado primeiro dia de aula chegou. Ademar estava ansioso, mas foi barrado na porta da escola. O garoto não usava um dos itens do uniforme do Instituto. O sapato Vulcabrás preto e engraxado era imprescindível. O garoto, com chinelo nos pés, sem dinheiro para comprar o Vulcabrás, retornou do portão da escola novamente no segundo e terceiro dias de aula.
No quarto dia, na contramão dos hábitos de alguns jovens, Ademar passou a pular a janela para assistir aula. Escondia os pés sob a carteira quando o professor se aproximava e assim seguiu driblando as barreiras que a vida lhe proporcionava.
Lembrei-me da história do sapato Vulcabras quando soube que a Câmara dos Deputados aprovara o direcionamento dos royalties do petróleo. 75% do dinheiro para a educação. Espero que esse dinheiro saia e chegue, não se perca no caminho. Um orçamento mais rico será importante, é uma evolução, no entanto, educação, na essência da palavra, necessita muito mais que dinheiro.
Com salários atrativos, certamente profissionais qualificados se interessarão pela sala de aula, no entanto, sem uma mudança comportamental na família brasileira, o dinheiro voltará de onde veio, o buraco. Não há doutor que suporte agressão física ou xingamento de adolescente e já que o povo resolveu cobrar, merece ser cobrado também.
Hoje, em diversos municípios brasileiros, os alunos recebem do poder público, uniformes (no Amazonas é denominado de farda), livros, calçados, merenda e transporte. Infelizmente, não dá para doar a vontade de estudar.
Voltando ao Ademar, este, após alguns meses pulando a janela do Instituto de Educação do Amazonas, conseguiu um emprego, perfurava cisternas e o primeiro ordenado foi gasto na compra de um par de sapatos Vulcabrás, que eram engraxados diariamente.
Anos se passaram, o Ademar se mudou para Goiás no início da década de 70, onde foi apelidado de Gato, tendo em vista sua agilidade como goleiro. Formou-se em Educação Física na Esefego, e se pós graduou em Pedagogia aplicada ao esporte. Dedica sua vida até hoje à natação competitiva no município de Anápolis/GO, cidade que adotou para viver. Gaba-se por ser o único professor, em época de capitalismo exacerbado a expulsar alunos indisciplinados de uma academia.
Durante sua carreira de Professor de Educação Física, cinco de seus atletas foram campeões brasileiros. Um deles nadou os Jogos Olímpicos de Atenas em 2004. Tornou-se um grande professor e ele precisava só de um Vulcabrás preto. A diretora da escola em tom firme, ameaçava: “tem que ser engraxado, ficar preto, preto feito petróleo.” E viva o tal do óleo!